Desenvolvido por Freud a partir da inspiração no mito grego de Narciso, o conceito de narcisismo marca uma série de desdobramentos na teoria psicanalítica, impactando, inclusive, na passagem da primeira para a segunda tópica. Nesse sentido, ao tratar teoricamente das questões relativas à constituição e desenvolvimento do sujeito, o conceito de narcisismo vai versar sobre alguns dos principais processos pelos quais o indivíduo passa na tenra infância, atravessado pelo papel dos cuidadores em sua criação e do quanto o narcisismo dos mesmos vai sendo gradativamente incutido na primeira experiência narcísica desse ser em desenvolvimento.
Para Freud, o conceito de narcisismo é usado para a explicação da origem do eu, que deve surgir de um novo ato psíquico, o narcisismo, que é uma experiência situada entre dois momentos: o autoerotismo e o amor ao objeto. Nesse sentido, vale ressaltar que a ideia de narcisismo como esse momento intermediário vai construindo as primeiras bases para a argumentação a respeito do seu papel constitutivo no sujeito, já que se desdobra em dois tipos: o narcisismo primário e o narcisismo secundário.
Ao falar de narcisismo primário, Freud ressalta que ele é a primeira experiência que o sujeito tem com o próprio corpo, ainda desprovida da linguagem, tendo como marca o investimento libidinal autoerótico, sem objetos externos (se não tem eu ainda, não tem objetos externos). Como característica a ser destacada, cabe enfatizar que o narcisismo primário é pré-eu e, portanto, pré-outro. Por esse motivo, ele não é ambivalente, isto é, ainda não contém as duplas “prazer-desprazer”, “amor-ódio”, pois ainda não tem um sujeito marcado pela linguagem. Em outras palavras, quando o objeto entra, entram as ambivalências e antíteses.
O caso do narcisismo secundário, por sua vez, também chamado de narcisismo do eu por Freud, poderia ser situado, fazendo um paralelo com a teoria lacaniana, após o estádio do espelho, quando há a entrada dos objetos externos. Em Freud, vale destacar, é muito confusa a diferença entre narcisismo primário e secundário, pois, em sua obra, não está muito claro o que marcaria a entrada do objeto na experiência do sujeito, evidenciando, de certa forma, a passagem para o narcisismo secundário.
Ainda a respeito da introdução conceitual de narcisismo, um aspecto trazido por Freud diz respeito à sua função enquanto complemento libidinal do instinto de autoconservação. De suma importância, essa consideração revela a relação que o narcisismo possui com a teoria da libido, de modo a atuar como um elemento central no desenvolvimento do sujeito, sobretudo no que tange às identificações estabelecidas de maneira ainda muito precoce na vida e no seu posterior amadurecimento e complexificação graças à entrada dos objetos externos e da construção do eu ideal, impulsionada pelos estímulos ofertados pelos cuidadores e pelo ambiente ao redor do bebê.
Dessa forma, é pilar considerar a relevância do narcisismo para o construção conceitual que Freud realiza a respeito da importância das pulsões de autoconservação como pré-requisito para as pulsões sexuais. Dito de outra forma, aqui é possível notar a ponte que vai sendo estabelecida para a segunda tópica do autor, ancorada não mais na estruturação do aparelho psíquico apenas a partir do consciente, pré-consciente e inconsciente, mas na sua sofisticação, sobretudo, com a entrada da ideia de supereu, tão fundamental para o desenvolvimento dos conceitos de eu ideal e ideal do eu, que vão nortear em boa medida os desdobramentos do narcisismo e das relações objetais subsequentes.
Sendo assim, quando Freud enfatiza que a pulsão sexual está ancorada em uma pulsão de autopreservação, ele está justamente colocando luz nos momentos mais precoces da vida dos seres humanos, que dizem respeito à alimentação e ao sugar do seio, por exemplo, que vão dar a base para o encontro com atividades prazerosas que, ao longo do tempo, vão sendo realizadas de maneira independente à necessidade de se alimentar.
Além disso, a psicanálise pensa o narcisismo a partir da seguinte triangulação:
- A imagem: uma forma de se apresentar, de se ver, como eu me apresento diante do outro;
- A identificação: o tipo de imagem com que o sujeito se identifica e se apega e a partir da qual se apresenta (por exemplo, papel de vítima);
- O investimento: o que essa imagem e identificação exige de energia para se sustentar.
Narcisismo e pulsão escópica
Ao tratar da relação entre narcisismo e pulsão escópica, Freud vai dissertar sobre a fase preliminar da pulsão de olhar, que tem o próprio corpo como objeto. De suma importância, a pulsão escópica vai dar notícias do sujeito que está se constituindo à medida que vai sendo transferida para outros objetos. A esse propósito, inclusive, importa resgatar a ideia de que o narcisismo desempenha o seu papel no desenvolvimento do sujeito por meio das identificações que o mesmo realiza em relação ao mundo externo, sempre bastante ancoradas no eu ideal, ou seja, na imagem criada a respeito de si, sobretudo por influência das informações e expectativas externas.
Aqui, então, o narcisismo passa a aparecer não mais etereamente, mas passa-se a ter notícias dele nos objetos. Em outras palavras, o narcisismo que antes retornava o investimento libidinal ao próprio corpo passa a investí-lo em outro objeto.
Narcisismo e amor
Quando entra o objeto, entram em campo as trocas: amar e ser amado. Nesse sentido, ser amado se aproxima mais do narcisismo, isto é, o sujeito ama com a expectativa de ser amado. Ao se refletir acerca dessa proposição, é possível perceber a presença do mito de Narciso no pensamento freudiano, já que revela justamente o caráter de busca daquilo que o sujeito já conhece, ou, ainda, que está incorporado em sua existência e que, portanto, possui alto nível de identificação consigo.
Além disso, no narcisismo, o mundo exterior não é importante ao sujeito, uma vez que, em relação aos próprios interesses, ele não se preocupa mais com o que ocorre em seu exterior e sim com o que ocorre consigo. Essa ideia é fundamental para compreender o lugar em que o narcisismo está situado, permitindo que se identifique a prevalência das questões individuais em detrimento do que é coletivo. Nesse sentido, é possível haver satisfação mesmo que o mundo lá fora esteja ruindo. A partir dessa lógica, o que passa a interessar do mundo externo deve estar relacionado com os próprios interesses do sujeito.
No que tange ao amor-próprio e à autoestima, conceitos próximos e pouco diferenciados por Freud, o autor frisa que se sentir amado faz com que ambos se elevem, e se não se sentir amado faz com que diminuam, já que o retorno do investimento narcísico apresenta-se aquém do investimento que foi realizado.
Narcisismo do bebê e amor dos pais
Ao tratar do amor dos pais e da sua relação com o narcisismo, Freud traz à luz uma série de questões basilares para a constituição do sujeito. Em primeiro lugar, ele vai resgatar a ideia de que o que os pais amam nos filhos tem a ver com o narcisismo deles, que é encarnado na primeira experiência narcísica do bebê. Isso quer dizer que, na prática, existem inúmeros processos ocorrendo de forma paralela entre a constituição desse sujeito em desenvolvimento e as próprias questões narcísicas de seus cuidadores, que vão transferindo para esse eu ideal em desenvolvimento suas expectativas e idealizações. O narcisismo do bebê e o amor dos pais se entrelaçam, então, à medida que os pais depositam a esperança de realizar seus sonhos e conquistas por meio do seu filho, operando, muitas vezes, de maneira compulsória no que tange aos planos e diretrizes a serem adotados no percurso dessa nova existência.
