Texto de referência: “O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada a experiência psicanalítica” – Comunicação feita no XVI Congresso Internacional de Psicanálise, Zurique, 17 de julho de 1949
Tratar do estádio do espelho consiste em mergulhar em um campo de compreensão, premeditado por Lacan, que busca trabalhar a constituição do sujeito desde os seus tempos mais primordiais, entre os 6 e 18 meses de idade. Nesse sentido, para o autor, o bebê, ainda no seu estado de desorganização corporal (sem conseguir se manter sequer de pé), já se depara com experiências psíquicas importantes para a incorporação do mundo externo à sua experiência intersubjetiva em construção. Em outras palavras, o estádio do espelho vai tratar, dentre outras coisas, da metáfora de o sujeito se ver refletido em um espelho, de modo que, em um primeiro momento, não compreende a imagem refletida como sendo o seu reflexo, tampouco algo que corresponde ao mundo externo, já que essa diferenciação ainda não existe em sua constituição. Antes de adquirir tal capacidade de discernimento, o bebê passa por processos de validação para, só então, ter condições de reconhecer aquilo que o espelho lhe apresenta. Na prática, ele depende do olhar de seus cuidadores para ter a validação daquilo que ele vê.
Nesse processo de reconhecimento a respeito do que é refletido, gradativamente se vai adquirindo a noção de separação do que é o eu e do que não é. Até que esse momento de fato aconteça, etapas intermediárias vão se realizando, como a já citada validação do outro, promovida pelo olhar externo que reconhece essa imagem como o reflexo do bebê que se vê refletido. Outro momento importante consiste no gradual espelhamento que vai ocorrendo, no bebê, em relação às outras crianças com quem eventualmente conviva, de modo que ele não diferencia automaticamente aquilo que ele provoca dos efeitos que gera, sendo muito comum observar em crianças pequenas uma reação de “vítima” em ocasiões em que foram elas quem exerceram alguma agressão ou dano a outro (por exemplo, quando a criança bate em um coleguinha e, ao vê-lo chorar, chora também, compartilhando com o adulto que foi ela quem sofreu o golpe). Na prática, ela de fato acredita nessa versão, pois ainda não tem clareza a respeito dessa distinção existente entre o seu eu e o outro.
Nesse campo de vivências intensas e fundamentais, Lacan aponta uma série de acontecimentos e momentos que vão marcando a vida desse sujeito, que exercem um papel central na forma como o seu eu vai se constituir e, consequentemente, nas manifestações que irá protagonizar ao longo da vida. Vale a ressalva de que o estádio do espelho está mais relacionado com um espaço de experiências, contornado pela metáfora do espelho, do que com qualquer ideia que possa preconizar um tempo específico para ocorrer. Ao contrário, Lacan compreende que esses processos ocorrem em circuito, influenciando diferentes aspectos do eu e promovendo diferentes efeitos em seu desenvolvimento. Nesse sentido, um ponto de destaque em sua teorização a esse respeito versa sobre o desejo materno direcionado ao bebê, responsável por introduzir os primeiros elementos simbólicos do eu ideal que antecede a constituição desse sujeito. Dito de outra forma, antes mesmo de vir ao mundo, a criança já é introduzida em uma ideia no que tange à sua existência, de modo que a instância simbólica está presente em seu desenvolvimento, em um primeiro momento, por meio da intermediação da mãe (função materna).
Ao contrário de Freud, portanto, Lacan já observa a castração desde o início da vida do sujeito, uma vez que essa mãe representa a cultura, as regras, os desejos e seus derivados desde o momento em que ele é concebido. A esse propósito, inclusive, o autor salienta que, quando ocorre a fixação no desejo da mãe, de tal forma que a interdição paterna não consegue penetrar nesse circuito, o sujeito fica propenso à paranoia, já que esse eu seguiu fragmentado, operando a partir do desejo da mãe, isto é, do externo. Por outro lado, quando o sujeito não recebe o desejo materno, fica mais propenso à esquizofrenia, pois fica sempre buscando fora o que não recebeu.
Longe de ser uma discussão simples e curta, o estádio do espelho contempla a interlocução de inúmeras ideias e conceitos preconizados por Lacan, sobretudo no que diz respeito aos momentos pelos quais o sujeito passa desde o seu nascimento, atravessado pelas ofertas do mundo externo e às inevitáveis e necessárias frustrações em suas experiências ao longo do seu desenvolvimento, capazes de gerar a incorporação das regras e o discernimento a respeito do que faz parte do seu eu e do que corresponde ao mundo externo. Além disso, o inconsciente, para ele, é constituído pela linguagem, pelos interditos. Nesse sentido, é imprescindível resgatar a noção de que, uma vez que esse inconsciente é algo que vai se manifestar por meio da fala, sua expressão vai se dar de diferentes formas, sendo da análise o papel de conduzir esse conteúdo que vai ser a tradução do embate entre o eu e o outro, isto é, esse duplo do espelho.
Na prática, isso vai desembocar em um processo de se resolver com o eu ideal, premeditado nos primórdios da existência pelos desejos que antecedem todos os sujeitos e que os coloca em uma posição de Pathos (amor, ódio, ignorância). Uma análise, portanto, vai propiciar que o sujeito se aproxime desse Pathos, desse lugar onde foi colocado “tu és isso”, e aí começa a verdadeira viagem. Em síntese, para resgatar a interlocução dessa prática clínica com o estádio do espelho, vale ressaltar que esse conceito busca explicar o processo de instauração do eu, que se constitui à medida que se vê refletido no espelho, mas que, para isso, precisa necessariamente da validação do outro e da identificação com o outro que faz a função de introduzir os primeiros símbolos em sua existência. Nesse sentido, o estádio do espelho vai conversar diretamente com a ideia de eu ideal e de ideal de eu, sendo que o eu ideal diz respeito, para se fazer um paralelo com Freud, com a identificação primária (a perda envolve a queda do eu, por exemplo), enquanto o ideal do eu tem a ver com a identificação secundária (tem a ver com para onde o eu deve se dirigir).
Outro ponto importante do estádio do espelho diz respeito à ideia de que, ao se ver refletido, inteiro, em frente ao espelho, o bebê, antes mesmo de estar pronto para sustentar essa existência integral, passa a reconhecer essa imagem completa como sendo sua. Disso, tem-se a consequência inevitável que é a distância entre a imagem refletida e aquilo que se verifica na realidade, ou seja, a falta, a incompletude. Esse poderia ser reconhecido como o momento inaugural de algo que vai perpassar a vida toda do sujeito, e que é um dos objetivos mais importantes de uma análise, que é o de diminuir a distância entre essa idealização do eu e aquilo que se consegue verificar na prática. Trata-se, em outras palavras, de diminuir a distância entre aquilo que o sujeito acha que é e aquilo que ele realmente é. Essa imagem tão cristalizada de quem se é tem a capacidade, inclusive, de distorcer a experiência subjetiva, com a finalidade de atingir essa expectativa criada a respeito dessa existência completa e livre de falhas – os mecanismos de defesa são justamente as estratégias que são utilizadas para manter essa imagem em sua forma, já que o eu, segundo Lacan, é uma construção do imaginário. Nesse sentido, o estádio do espelho dá ênfase ao registro do imaginário, ou seja, o eu é fruto de uma ilusão criada a respeito de uma unidade, de uma totalidade.
